segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Resenha do filme "Bicho de Sete Cabeças"


Bicho de Sete Cabeças (2000) é um drama brasileiro da diretora e roteirista Laís Bodanzky. Obra instigante, baseada na autobiografia de Austragésilo Carrano, Canto dos Malditos, que nos remete a profundas reflexões acerca da superficialidade de relações familiares e de certas imposições da sociedade e suas implicações no desenvolvimento de mentes insanas.

O filme conta a história de Wilson Neto de Souza (interpretado por Rodrigo Santoro), um adolescente que, por causa das desconfianças do pai de que estaria viciado em drogas, é internado em “clínicas psiquiátricas de reabilitação” e, a partir daí, tem sua rotina, modo de pensar e mesmo condição psicológica completamente alterados pela dura realidade vivenciada lá dentro.

No filme, com muita clareza e eficiência, são enfocadas três questões sociais que são de grande valia na realidade brasileira da atualidade: a relação cada vez mais tênue entre pais e filhos, o uso de drogas e a forma como o sistema cria e, mesmo assim, mantém à margem as pessoas mentalmente deficientes.

Mostra-se a falta de interação entre um adolescente, que naturalmente possui muitas contradições e questões conturbadas na mente, que necessita de contato com alguém mais maduro a lhe guiar, a lhe ouvir, a aconselhar e, de outro lado, um pai pouco tolerante e uma mãe muito frágil que não sabiam como fazê-lo. Na nossa sociedade, esse tipo de relacionamento dentro de casa não é novidade: data desde a colônia patriarcal, quando o “poder” do pai de família era incontestável. No filme, mostra-se que o aparente jeito “rebelde” da personagem principal no início da trama e até mesmo o fato de ele ter sido internado decorrem exatamente dessa impossibilidade de desenvolvimento de um relacionamento mais próximo, principalmente, com seu pai.

O momento que mais marca esse ponto no filme é quando a personagem Neto (Rodrigo Santoro) fala para o pai (Othon Bastos) que vai viajar e, depois do “interrogatório” e de mais uma discussão exaltada, ele empurra o pai, que ameaçava batê-lo, e foge correndo. A montagem, o movimento da câmera, a trilha sonora encaixados na cena em que ele corre à toda velocidade, enchem-na de significação: é como se o garoto fugisse não só do pai naquele momento, mas das brigas, das obrigações, da pressão em que vivia dentro da própria casa, sob a vigilância autoritária do pai.

O outro tema que entra em discussão em Bicho de Sete Cabeças é a questão do sistema manicomial brasileiro e de uma parcela da sociedade que, pela exclusão, foi afetada e que, afetada, é ainda pior tratada: os “loucos”.

Quanto ao enfoque, observa-se algo de inovador, por se tratar de um tema pouco discutido numa sociedade que ainda é muito preconceituosa e omissa em relação ao assunto. No decorrer da trama, mostra-se como os “loucos” chegam a ser internados, o quanto eles vivem oprimidos em tais “guetos” nos quais são jogados e como lidam e, basicamente, “se viram” para sobreviver à tão baixa qualidade de vida. Ao se deparar com cenas chocantes da realidade crua dos manicômios – constantemente eufemizados em “clínicas psiquiátricas” – é como se se despertasse para essa questão.

É mostrado no filme o modo com que os internos interagem e criam vínculos entre si. Essa foi uma maneira que a diretora encontrou de transmitir uma ideia de humanidade, foi uma forma de mostrar que os internos, sejam eles loucos, viciados ou não, também são pessoas, vivem em grupo, discutindo entre si suas questões, formando laços afetivos, tendo eles noção de seu espaço na sociedade ou não. As personagens de Gero Camilo (interno Ceará) e Caco Ciocler (interno Rogério), com os quais a personagem principal se depara no manicômio e com elas interage, desempenham papéis muito importantes na construção dessa idéia, mostrando-se carentes de conversa, de brincadeiras em grupo e propensos a empatias e afeições. A interpretação dos dois, em especial a de Gero, foi magnífica e plenamente digna receber prêmios importantes como os de Melhor Ator Coadjuvante no 3º Festival de Brasília (2000) e no 5º Festival do Recife (2001), e de ter se tornado referência ao próprio filme como se tornou.

A montagem das cenas e a trilha sonora entram em perfeita harmonia, tornando-se complementares na construção significativa dos momentos do filme. Movimentos de câmera inusitados, com momentos de câmera subjetiva, cortes abruptos e distorções acompanham a ideia de loucura, perturbação mental, e fazem com que quem assiste ao filme se sinta mais sensibilizado e próximo à realidade da personagem principal.

Numa análise ao conteúdo do filme, a professora associada do Departamento de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Mary Enice Ramalho, afirma que são abordados “temas tratados com a sensibilidade e a maturidade que o cinema brasileiro merecia. Laís Bodanzky consegue uma narrativa segura, direta e forte”. Sem sombra de dúvidas, foi essa “sensibilidade” citada pela professora da USP, que, aplicada a tal tema polêmico - de forma cuidadosa, mas, ainda assim, “madura e direta” -, consagrou o filme Bicho de Sete Cabeças como uma grande obra contemporânea do cinema brasileiro.

A diretora

Laís Bodanzky, desde sua primeira obra - o curta Cartão Vermelho (1994), que traz como temática a descoberta da sexualidade entre crianças – demonstra uma facilidade em usar de temáticas polêmicas, construindo-as de forma cuidadosa, algumas vezes até leve e descontraída, porém direta e clara. No seu filme mais atual - As Melhores Coisas do Mundo (2010) – Laís, já com uma filmografia consagrada por obras como Bicho de Sete Cabeças (2001) e Chega de Saudade (2007), volta a tratar de um tema altamente discutido: a adolescência e suas questões sexuais, sociais, amorosas. Primorosa nesse tipo de abordagem, Laís Bodanzky traz a marca da universalidade e da maturidade aos seus trabalhos, marcas essas que lhe renderam importantes prêmios como os de Melhor Direção no Grande Prêmio BR de Cinema Brasileiro, no Festival de Recife e no Festival de Brasília.


Sistema manicomial: questão de ordem e de progresso?

A implantação de um sistema de clínicas psiquiátricas no Brasil não é atual: veio com a família real portuguesa no início do século XIX, com pretexto de “organizar a vida urbana e disciplinar a sociedade como um todo”. Apesar de esse uso do conceito “disciplina” apresentar-se sob forma de exclusão social, torturas físicas e violação de outros direitos humanos, as discussões acerca do assunto são relativamente atuais. Inspirado na luta do ativista italiano Franco Basaglia contra a violência dos “tratamentos psiquiátricos” no seu país, no fim da década de 70, o Movimento na Luta Aintimanicomial brasileiro conseguiu como primeiro resultado favorável e de alcance nacional: a sanção da Lei da Reforma Psiquiátrica de 6 de abril de 2001, que, dentre outras medidas, torna obrigatória a comunicação oficial de internações feitas contra a vontade do paciente. Mesmo com isso, esse tema continua sendo quantitativamente pouco representado, visto que é um grupo pequeno de ativistas em prol da causa contra todo um sistema de “disciplina, organização e cura” que ainda aparenta convencer e alienar a população brasileira.


Veja um trecho do filme Bicho de Sete Cabeças:





Referências bibliográficas:

BASAGLIA, F. (Org.). A Instituição Negada - Relato de um Hospital Psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1991.

RAMALHO, Mary Enice. Bicho de Sete Cabeças – um grito de alerta. In: Comunicação & Educação, pp. 91-93, Jan/Abr 2002

http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/bicho-de-7-cabecas/bicho-de-7-cabecas.asp
http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=23

http://www.sobaminhalente.com

3 comentários:

  1. Tem lá em casa e eu nunca assisti.. =/.. Assistirei!

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  2. Assiste, sério. Para mim, é um dos melhores filmes brasileiros.

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  3. Baixar o Filme - Bicho de Sete Cabeças - http://mcaf.ee/d5tq9

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